CLÁUDIA R. SAMPAIO [ Lisboa 1981 ]

Uma característica essencial da vida emocional desta autora é o seu estado afetivo que é apresentado como a experiência de seu caráter individual. A poesia da Sampaio passa pelas raízes do mal, movendo-se entre certezas alucinadas, invocações afetuosas e relâmpagos de delírio. No entanto, para aqueles curtos circuitos da mente que atropelam o amor e o próprio ser, a escrita pode reverter plenamente a angústia dos dias, opondo-se à heterogeneidade evasiva dos elementos, a possibilidade de abraçar o Tudo, deixando de lado o caos, deixando, por alguns breves momentos, as instâncias da melancolia.

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Tu sentado na praça.
Entre nós uma enorme quantidade de frio.,
uma reunião de pombos e dis taxistas de
dentadura lunar.
Comove-me esta intensa fila para se
chegar à ginja como se assim se chegasse
à verdade das coisas,
aos braços tão curtos da solidão ibérica.
Comove-me a velha que sobe as saias
em busca. A juventude não vem.

E olhámo-nos a desmaiar a calçada
porque a verdade somos nós
desencontrados nesta praça onde
liberdade é não sabermos de ninguém.
Por aqui está tudo certo, até o nojo
da insensatez arquitectónica.

E não falamos
não falamos
não voltamos a desiludir os pedaços de um
casal abandonado aos rissóis e à guitarra
em esmola
estamos em margens diferentes
e no Rossio não há pontes.
Porque nesta praça onde se chora o frio
quer-se que os dias sejam sempre iguais
até à loucura dos que não bebem.

Quando nos encontramos
cairão os últimos tremores sobre
as pernas
e a tua cabeça no meu colo dentro
lembrará a humanidade toda

porque é assim que o mundo começa
e é assim que o mundo acaba.




Do livro de Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, Lisboa, Tinta-da-china, 2021.

É agora, que te foste embora, o momento
em que nos conhecemos melhor.
É agora, entre este espaço vazio que
vai da minha boca à tua, que está toda
a verdade desembocada em glória.
Aqui estou eu sentada a perder-te.
Aqui estou eu a ser-nos aos dois enquanto
ainda é noite, a adiar que seja amanhã
quando vou rebentar como as lâmpadas.
Aquie estou eu a escrever enquanto não
encontro o meu corpo que foi contigo
atirado ao teu ombro em casaco pesado
sem etiqueta
por favor não engomes. 

Depois não seremos mais nada para além
deste lamber de chão.
Seremos apenas passado recente,
passado passado, passado passadíssimo
uma folga chata que ficou mal esticada.
Depois não haverá o teu rasto entre as
portas, nem o eco do teu cheiro, nem o teu
estremecimento nocturno, que era também o meu.

E eu tenho tanta pena de estar aqui a perder-te
porque o meu amor não é Jesus ressuscitado a cada prego
tão novo como uma metáfora
atinado como um rebanho quente
erguido em dedos longos,
desdobrado.

E agora sou uma esponja e encolho
porque ainda estamos a reduzir-nos
em violentíssimo eco
Adeus, eus, eus

Mas amanhã não.
Amanhã não haverá retorno nem cola que
nos junte as vidas
porque o amor é agora, neste preciso instante
em que levam o lixo, em que a minha cara
encolhe e se enruga em sal, em que sou feia,
em que não estás.

O amor é agora, mesmo quando somos as
palavras esmagadas contra os vidros e a
violência lindíssima de dois corpos mirrados
de costas voltadas.

Amanhã não.
Amanhã não celebro em brados cegos o
futuro calmo da secura de um rio.



Do livro de Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, Lisboa, Tinta-da-china, 2021.

Tragam-me um homem que me levante com
os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia
com a graça de um balão acabado de encher
tragam-me um homem que venha em baldes,
solto e líquido para se misturar em mim
com a fé nupccial de rapaz prometido a despir-se
leve, leve um principiante de pássaro
tragam-me um homem que me ame em círculos
que me ame em medos, que me ame em risos
que me ame em autocarros de roda no precipicio
e me devolva as olheiras em gratidão de
estarmos vivos
um homem homem, um homem criança
um homem mulher
um homem florido de noites nos cabelos
um homem aquático em lume e inteiro
um homem casa, um homem inverno
um homem com boca de crepúsculo inclinado
de coração prefácio à espera de ser escrito
tragam-me um homem que me queira em mim
que eu erga em hemisférios e espalhe e cante
um homem mundo onde me possa perder
e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos
atirando-me à ilusão de sermos duas
novíssimas nuvens em pé.




Do livro de Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, Lisboa, Tinta-da-china, 2021.

Passei todo aquele poema a viver.
Lambi as palavras desde a folha ao início de
mim, palavras presas na curva dos olhos
por onde desceu depois um verbo.

Vivi repetidamente.

E dentro desta anáfora descobri que um
momento nunca é igual a outro.
Como um poema.
Como eu, que nunca sou igual
a mim própria.
Às vezes sou eu sem ser.
Às vezes morro erguida para que me
desfiem e vistam.

Do livro de Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, Lisboa, Tinta-da-china, 2021.

Existo até à memória
como um peixe às volta.

Excepto isto, encaminho-me
aos Deuses com uma
garrafa de vinho
e os olhos para dentro.
Excepto isto
esta mulher extremamente
ao acaso
numa extrema cama exausta

Tenho os olhos muito magros
à espera da vida toda.
Em cada um deles há uma
mulher por abrir
e isso requer as navalhadas
de um dia mais,
estremecer.

E depois arder em flores de Inverno,
lúcida
neste hospital onde tentam ensinar-me
cores
com doentes cintilantes queimando asas,
salvando médicos
sendo átomos e florestas
sorrindo aos gritos,
balançando no indizível
morrendo transparentes




Do livro de Cláudia R. Sampaio, Ver no escuro, Lisboa, Tinta-da-china, 2021.

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