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Na obra de Joaquim Manuel Magalhães comunica-se realidade, incerteza e malestar. Ele se apresenta como um poeta que confere às suas composições os sinais e sintomas das cicatrizes do tempo que é também o nosso tempo histórico. A sua pode ser definida como estética neoexpressionista o que o faz passar como uma das figuras exemplares do gênero no contexto da poesia portuguesa contemporânea. Esta estética estende-se também ao sentimento amoroso que permeia toda a sua obra. Uma afectividade que provém do amor e da amizade e que, portanto, contribue a enfrentar a ruína e a doença da qual o mundo está permeado, mas que infelizmente sucumbe perante a degradação da vida diária.
Trabalharão com as palavras que lhes deixas. Perguntarão os sentidos. Ninguém mais escutará a tua voz como tu a ouviste. Assim errando falarão de ti. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
1 Foste para a América como o camponês dum romance que li no avião até à cidade onde me esperava o teu amigo. Tinha sido ontem. Ninguém sabia ao certo, os andaimes ao alto dos andares, talvez findasses antes de bater no chão. O cabelo loiro rasgado de sangue. Um miserável vapor o corpo vai. Um grau inferior e rutilante findara. Nunca mais sigo a teu lado na ferida da adolescência. Volto os olhos para o nome dos barcos, a colina com árvores naixas, sombra de mulheres com cestos, gaivotas pousadas nos armazéns. Os lençóis com que te taparam levam contigo a maldição dos movimento reais. Não te vás embora. Aquele onverno foi o mais feliz, pela primeira vez tinha uma lareira, vinha a voz aceitadora do teu pai trazer-me de manhã duas laranjas, as galinhas no quintal a comer milho, a lua sobre o mar no espelho da sala. A solitária vida e o teu amigo diziam-me para entrar naquele bar com músicas de ninguém. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
5 Ele sentia enquanto o sol descia sobre a neve castanha de cidade quase lágrimas ao entrar em casa. A luz da lâmpada caía no jornal, a água quente corria das torneiras. Detrás dos cortinados brilhavam os anúncios, a crueldade das janelas, os eléctricos, o livro aberto junto do café, do álcool. Falsas saídas, ordens, refúgio, coisas indignas de se ver. O medo vem sentar-se a esta cama, vem comigo, olha o sombrio rosto do rapaz as mãos assombradas pela aridez da luz rente ao chão corrido de vazios. Nos caminhos que seguiam os teus olhos os mais belos rostos, troncos, gestos tudo sem ver-te te perdia. Cada corpo do teu desparecendo chegará à morte sem chegar a ti. Frágil algoz, prova do meu vinho. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
ALBA Olhavam-se, viera como os outros, ficava depois de terem ido. Viam-se no mesmo espelho os dois. Uma alegria dolorosa calava-se. Os autocarros voltavam a ouvir-se para além do parque. A medo prendiam os olhos a sorrir. Desapertavam os atacadores. Abriam os colarinhos. Perdiam-se no ardente tecido em redor do peito. Na raiz do sexo o sobressalto da primeira claridade dos estores. A mistura de sorte e de prazer a que chamamos o bem. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
8 Estava ele à janela e ia eu a passar quando as luzes do semáforo me obrigaram a parar naquela esquina do dia que se cobriu de luar os lábios com a camisa toda por abotoar se eu pudesse chamá-lo para a noite que já vinha por sobre os morros cortados pela construção civil trazê-lo para a calçada arrastá-lo para aminha falta de encontrar alguém irmos os dois na carrinha fazer o resto de entregas de armazém em armazém voltar por junto do rio aos lugares onde ninguém ouve um motor a parar e pegar na mão que tem enlaçada a outra mão se eu pudesse expulsar os consumos viajantes com que ganho o ordenado os caixotes de cimento os caixilhos de prensado os rolos de papelão as amostras de oleado curvá-lo sobre o assento segurá-lo assim dobrado no bistre céu da cidade até voltar a ser dia entre guindastes imóveis contentores e maresia mecadorias vazias paradas em meu redor os olhos mortos na rua lá no alto o meu amor. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
10 Era de inverno, em Vila Real. A neve cobria as ruas que levavam ao liceu. Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal no tampo de vidro, o vapor da respiração ligava-nos entre as conversas de mesas indiferentes. E querias olhar para mais dentro de mim. Os pombos escondidos no beirais tapavam a cabeça na plumagem de chimbo, cor de céu. Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos em cada um dos nossos livros a primeira letra dos nossos nomes, de modo a desenharem uma única letra que não havia em alfabeto nenhum. Que bem que estávamos tão mal ali sentados, a faltar às aulas, nessa primeira vez em que acontescia, sem sabermos, um amor. Tu não ias adivinhar as leis secretas que já nos separavam. Tu não podias lutar na via de sangue da minha vida. Mas sempre que tombar a neve em Vila Real e desceres a avenida a caminho do café de alguma destas coisas, quem sabe, te hás de lembrar. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.
12 Bem perto, no alto da escadaria não podias ver-me reprendido do desejo que não ia durar só essa noite e a manhã seguinte. Outros chegavam e diziam a que tu sorrias. Trocavas palavras que não eram ainda para mim. À espera na nascente dessa tarde de um bolso inesperado acendias um cigarro. Infeliz a minha máscara seguia ao brilho de cúmplices sorrisos na sala escura e recolhida. Era eu, um corpo amortecido pela pequena-burguesia das origens segada na regra das províncias. Sem sedução olhava para ti. Restos de comida e embalagens de leite de iogurte esvaziadas, guardanapos de papel amorrotados com manchas de gorduras, cinzas entre garfos e colheres e pontas de cigarros repisadas nos tampos de fórmica fendida. Abri espaço para o tabuleiro, sentei-me entre essas ruínas. Pelo rumor de cantina dos jantares a rapariga de bata enodoada levou talheres e pratos e bandejas e limpou o estrume abandonado com um trapo fétido e um esgar. À minha volta dispunha-se uma ilha para vires caminhando para mim. Troquei por um litoral delapidado na sevícia de coméricios recentes os cantos avinhados das vindimas, a certeira poda dos bacelos, rogas partindo aos primeiros frios e as matas de fetos com represas branqueadas pelo sabão azul. Acordo à noite com traineiras e os granitos dos dias soterrados são gaivotas, caracóis e canas. No clandestino fim da juventude. Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.