Joaquim Manuel Magalhães (Peso da Régua, 1945)

Créditos da imagem: http://www.publico.pt

Na obra de Joaquim Manuel Magalhães comunica-se realidade, incerteza e malestar. Ele se apresenta como um poeta que confere às suas composições os sinais e sintomas das cicatrizes do tempo que é também o nosso tempo histórico. A sua pode ser definida como estética neoexpressionista o que o faz passar como uma das figuras exemplares do gênero no contexto da poesia portuguesa contemporânea. Esta estética estende-se também ao sentimento amoroso que permeia toda a sua obra. Uma afectividade que provém do amor e da amizade e que, portanto, contribue a enfrentar a ruína e a doença da qual o mundo está permeado, mas que infelizmente sucumbe perante a degradação da vida diária.

Trabalharão com as palavras que lhes deixas.
Perguntarão os sentidos.
Ninguém mais escutará a tua voz como tu a ouviste.
Assim errando falarão de ti.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

1

Foste para a América como o camponês
dum romance que li no avião
até à cidade onde me esperava
o teu amigo.
Tinha sido ontem.
Ninguém sabia ao certo, os andaimes
ao alto dos andares, talvez findasses
antes de bater no chão.
O cabelo loiro rasgado de sangue.

Um miserável vapor o corpo vai.
Um grau inferior e rutilante
findara.
Nunca mais sigo a teu lado
na ferida da adolescência.
Volto os olhos para o nome dos barcos,
a colina com árvores naixas,
sombra de mulheres com cestos,
gaivotas pousadas nos armazéns.
Os lençóis com que te taparam
levam contigo
a maldição dos movimento reais.

Não te vás embora.
Aquele onverno foi o mais feliz,
pela primeira vez tinha uma lareira,
vinha a voz aceitadora do teu pai
trazer-me de manhã duas laranjas,
as galinhas no quintal a comer milho,
a lua sobre o mar no espelho da sala.

A solitária vida e o teu amigo
diziam-me para entrar naquele bar
com músicas de ninguém.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

5

Ele sentia enquanto o sol descia
sobre a neve castanha de cidade
quase lágrimas ao entrar em casa.
A luz da lâmpada caía no jornal,
a água quente corria das torneiras.
Detrás dos cortinados brilhavam os anúncios,
a crueldade das janelas, os eléctricos,
o livro aberto junto do café, do álcool.
Falsas saídas, ordens, refúgio,
coisas indignas de se ver.

O medo vem sentar-se a esta cama, vem comigo,
olha o sombrio rosto do rapaz
as mãos assombradas pela aridez da luz
rente ao chão corrido de vazios.
Nos caminhos que seguiam os teus olhos
os mais belos rostos, troncos, gestos
tudo sem ver-te te perdia.
Cada corpo do teu desparecendo
chegará à morte sem chegar a ti.

Frágil algoz, prova do meu vinho.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

ALBA


Olhavam-se, viera como os outros,
ficava depois de terem ido.
Viam-se no mesmo espelho os dois.

Uma alegria dolorosa calava-se.
Os autocarros voltavam a ouvir-se
para além do parque.
A medo prendiam os olhos a sorrir.

Desapertavam os atacadores.
Abriam os colarinhos. Perdiam-se
no ardente tecido em redor do peito.

Na raiz do sexo o sobressalto
da primeira claridade dos estores.
A mistura de sorte e de prazer
a que chamamos o bem.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

8

Estava ele à janela
e ia eu a passar
quando as luzes do semáforo
me obrigaram a parar
naquela esquina do dia
que se cobriu de luar
os lábios com a camisa
toda por abotoar

se eu pudesse chamá-lo
para a noite que já vinha
por sobre os morros cortados
pela construção civil
trazê-lo para a calçada
arrastá-lo para aminha
falta de encontrar alguém
irmos os dois na carrinha

fazer o resto de entregas
de armazém em armazém
voltar por junto do rio
aos lugares onde ninguém
ouve um motor a parar 
e pegar na mão que tem
enlaçada a outra mão
se eu pudesse expulsar
os consumos viajantes
com que ganho o ordenado
os caixotes de cimento
os caixilhos de prensado
os rolos de papelão
as amostras de oleado
curvá-lo sobre o assento
segurá-lo assim dobrado

no bistre céu da cidade
até voltar a ser dia
entre guindastes imóveis
contentores e maresia

mecadorias vazias
paradas em meu redor
os olhos mortos na rua
lá no alto o meu amor.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

10

Era de inverno, em Vila Real. A neve
cobria as ruas que levavam ao liceu.
Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal
no tampo de vidro, o vapor da respiração
ligava-nos entre as conversas de mesas indiferentes.
E querias olhar para mais dentro de mim.

Os pombos escondidos no beirais tapavam
a cabeça na plumagem de chimbo, cor de céu.
Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos
em cada um dos nossos livros a primeira letra
dos nossos nomes, de modo a desenharem
uma única letra que não havia em alfabeto nenhum.
Que bem que estávamos tão mal ali sentados,
a faltar às aulas, nessa primeira vez
em que acontescia, sem sabermos, um amor.

Tu não ias adivinhar as leis secretas
que já nos separavam. Tu não podias
lutar na via de sangue da minha vida.
Mas sempre que tombar a neve em Vila Real
e desceres a avenida a caminho do café
de alguma destas coisas, quem sabe, te hás de lembrar.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

12

Bem perto, no alto da escadaria
não podias ver-me reprendido
do desejo que não ia durar só
essa noite e a manhã seguinte.
Outros chegavam e diziam
a que tu sorrias. Trocavas
palavras que não eram
ainda para mim.

À espera na nascente dessa tarde
de um bolso inesperado
acendias um cigarro.
Infeliz a minha máscara seguia
ao brilho de cúmplices sorrisos
na sala escura e recolhida.
Era eu, um corpo amortecido
pela pequena-burguesia das origens
segada na regra das províncias.
Sem sedução olhava para ti.

Restos de comida e embalagens
de leite de iogurte esvaziadas,
guardanapos de papel amorrotados
com manchas de gorduras,
cinzas entre garfos
e colheres
e pontas de cigarros repisadas
nos tampos de fórmica fendida.

Abri espaço para o tabuleiro,
sentei-me entre essas ruínas.
Pelo rumor de cantina dos jantares
a rapariga de bata enodoada
levou talheres e pratos e bandejas
e limpou o estrume abandonado
com um trapo fétido e um esgar.
À minha volta dispunha-se uma ilha
para vires caminhando para mim.

Troquei por um litoral delapidado
na sevícia de coméricios recentes
os cantos avinhados das vindimas,

a certeira poda dos bacelos,
rogas partindo aos primeiros frios
e as matas de fetos com represas
branqueadas pelo sabão azul.
Acordo à noite com traineiras
e os granitos dos dias soterrados
são gaivotas, caracóis e canas.
No clandestino fim da juventude.


Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do lugar, Antologia, Huerga y Fierro Editores, 1998.

Lascia un commento