António Franco Alexandre (Viseu, Portugal, 1944)

Desta vez vai-se falar do poeta António Franco Alexandre e da sua produção juvenil, ou seja, um universo poético que o público leitor dos anos oitenta ainda não conhecia. Os seus primeiros versos apareceram em uma revista antológica que tinha um nome muito singular, porque lembrava o bíblico: Sião. Publicada em 1987, esta revista deu espaço à nova poesia que surgiu entre o fim da ditadura e a primeira metade dos anos oitenta. Efectivamente, parte da produção inédita de autores que já tinham publicado, mas também a de autores nunca publicados em livro, teve a possibilidade de se conhecer a través esta revista. Os criadores e colaboradores de Sião foram Rui Baião, Al Berto e Paulo Costa Domingos.

Sião tinha uma identidade heterodoxa, cuja intenção era pretender substituir um sistema de valores e uma visão da vida desalentadora com outra idealista de paz, esperança e libertação. António Franco foi um desses autores que deu prova de sua escrita através deste meio. Seu esordiente poético aposta em efeitos de linguagem com quebras sintáticas, transgressão e construções inusitadas. A sua poderia ser definida uma poética de fragmentos que a través da estilística discursiva determina a consequente re-uniâo de si. A experiência poética se traduz à maneira de um encontro erôtico-lírico em que não sempre pode se dar a reconciliaçâo do desejo, testemunha de um vazio a que se lança o homem contemporâneo.





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COITO

todos os sítios presos como me pesa o braço de ouro
esta tarde de sandálias atadas ao coração com a boca
húmida de esperma & contraceptivos eficazes
escrevemos o poema com o pavor da baba sobre os olhos
mentindo devagar. é um parque? são a nudez? o calcário
despega-se dos ossos, os ossos do chão, o chão do sítio
o que fica depois é o lugar livre de te pegar numa terceira mão
e soletrar o parágrafo tantode código civil. não. esta nudez
cola-se-me ao corpo, ao braço de ouro, à humidade
inquieta dos dentes. foeda est in coitu (et brevis) voluptas. o que fica
depois? É um lugar de lençóis, de lâmpadas partidas,
de muitos dedos dentro do ânus, de leis incompossíveis. a linha
recta que estende o sítio, oculta o  sítio, resvala sobre o sítio.
nela o espítito (logos) desata o seu pavor. um rastro?
vejamos o fogo: deserto. O ar poeira. a água dissipada.
e a terra que os mistura, um rastro de olhos presos.
é a névoa? ser nu é uma névoa? assim se despega
dos sítios a palavra, a palavra da baba, a baba do pénis.
despega-se do tempo, colada aos dentes, a um lugar
livre de sandálias & bismuto de ouro. é um rio?
diz-me de amor, cos dedos no calcário. parágrafo mil. esperma
certificado conforme. posição admitida. vejamos: o fogo. assim se dissipa
o chão do sossos, os ossos da nudez, a nudez de ser nu.
depois o que fica? foeda est in coitu etc. fica a palavra.
palavra que fica. e fica um lugar. um sítio de rastros,
um sítio deserto. um ar a pavor. sandálias na boca.
um resto de sítios atados nos ossos. é um coração?
fica sobre aterra o espaço das mãos. mas entre o seguinte:
entre os ossos e o chão.
PARIS, SUMÁRIO

1
paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel di Brasil ao 6°
andar sem as-
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio a dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure

2
paris, o desemprego. açorda de gente em pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão pelo teu rostro repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.

3
paris, astrologia. antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Staurno no quadrante de Vé
nus.

4
volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner’s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.

5
paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
de tal i qual no brr
aço, & no pinheiro
cartazes délecê.

6
asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna. acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.


de Sião, 1987




PARIS, SUMÁRIO

1
paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel di Brasil ao 6°
andar sem as-
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio a dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure

2
paris, o desemprego. açorda de gente em pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão pelo teu rostro repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.

3
paris, astrologia. antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Staurno no quadrante de Vé
nus.

4
volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner’s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.

5paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
de tal i qual no brr
aço, & no pinheiro
cartazes délecê.

6
asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna. acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.


de Sião, 1987







VENEZA, TRAVESSIA

porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
saba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes que bradas, il manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros. dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios. dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um resto de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/spaghetti.
mrs. Stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa nos pássaro. miragem. quase noite.
vago,  de hasjish, o acre
minuto de falar. dizia «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece. dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento. a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas. invento. na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. In
vento. Manhãs, quando se parte, de dentro 
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue.,
& as mãos espalhavam a pele, cobriam
cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul. e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo, dizia «o mar,
algures os astros,
& a boza amealhava o uro ardido.
Invento. o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas. horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
Uma manhã, invento. dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,

& os aviões roncavam sobre a areia.
Subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marco.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas. um fio cortado a vento.
Inclinado nos olhos, olhava. Inclinado nas unhas,
olhava, dizia, «amanhece,
porque amanhecia.



de Sião, 1987.

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