1949 – 2021
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Nuno Júdice é o autor de uma obra poética decisiva que se difundiu também no campo da ficção e da não-ficção, interessando-se por toda a tradição literária que se reflecte nos seus versos. Muito rico e torrencial em estilo, ele conseguiu trazer a suas consequências extremas uma elaboração verbal quase delirante, onde se fundem referências culturais e dá livre curso a uma exuberância metafórica forte. Integrando, na complexa rede de seu discurso, a retórica de outras eras – Holderlin e os românticos alemães, Mallarmé e os simbolistas franceses, mas também o português decadente-, sua escrita absorbe, de uma forma quasi vampira, esses códigos e transforma alguns dos seus textos em narrativas mais ou menos fantásticas, em que as fronteiras entre lucidez e loucura são derrubadas.
POEMA DITO DE AMOR Uma corrosão de líquidos no copo do teu riso: como se a tua boca trouxesse as chuvas ácidas da noite; e as tuas frases queimassem a terra dos corpos. Bebo-te, no entanto; e ardes por dentro de mim. O teu amor espalha-se-me pelas veias, sobe até à cabeça, explode pelos olhos e pelos ouvidos com que te vejo e ouço. O halo das ocasiões envolve-nos. Até ao fim da noite, e pelo meio da vida. de Teoria Geral do sentimento, Quetzal Editores, 1999. POEMA DE AMOR PARA USO TÓPICO QUero-te, como se fosses a presa indiferente, a mais obscura das amantes. Quero o teu rosto de brancos cansaços, as tuas mãos que hesitam, cada uma das palavras que sem querer me deste. Quero que me lembres e esqueças como eu te lembro e esqueço: num fundo a preto e branco, despida como a neve matinal se despe da noite, fria, luminosa, voz incerta de rosa. de Teoria Geral do sentimento, Quetzal Editores, 1999. O SEXO DOS ANJOS Foi em bizâncio, antes da queda. Discutiam o sexo dos anjos, e a discussão ficou interrompida quando os turcos cortaram o fio à meada, se é que não cortaram mesmo o sexo dos anjos. bizãncio, então, podia ter caído uns dias mais tarde: talvez, durante esses dias, se pudesse chegar a uma conclusão sobre qual era, afinal. o sexo dos anjos; e o assunto interessa-em porque os únicos anjos que conheço são en estátua, e não é possível espreitar o sexo de uma estátua! A queda de um império, é verdade, dá-nos estas coisas impossíveis: dá-nos um voo de argumentos teológicos sobre o sexo; e traz-me, de súbito, o teu rosto inquietante na sua fixidez de enigma grego - esse rosto de perfil, e também gosto de perfis, mesmo quando não são de anjos ou não têm a linha pura dos ícones gregos. Basta-me, então, saber que é o teu rosto; ouvir ainda as tuas últimas palavras de despedida, que me soaram demasiado secas (mas que outro tom se pode usar numa despedida para não se ser patético, como esses que ainda discutiam o sexo dos anjos num concílio cercado pelos turcos?) - e dizer-te, agora que o sexo dos anjos me trouxe o teu sexo, que não há voltas a dar ao amor quando o céu muda a cada instante, e é preciso, apesarr de tudo, que alguma coisa permaneça intacta em tempos de mudança. Que outros impérios terão de cair para isso? Em que novo concílio ouvirei discutir o sexo dos anjos, sabendo desde já que o único sexo que me interessa é o teu? Ouvem então, de novo: em bizâncio, uma tarde, foram todos degolados à beira da conclusão. de Teoria Geral do sentimento, Quetzal Editores, 1999. A TARDE SEM FIM «Du monde entier, au coeur du monde» Blaise Cendrars Na estação de helsínquia, onde lenine esperava o comboio de regresso, dou comigo, por entre máquinas de jogo e copos de cerveja, a invejar o bêbedo que abraça a rapariga gorda, de cabelos longos e saia curta; e riem-se, como se o amor se servisse naquele bar de consumo rápido, por entre os comboios que partem e os que chegam. A esta hora - o meio da tarde do verão finlandês - com o calor que ainda entra pelas grandes portas da estaçãa de helsínquia, ouça voz desse poeta que sonhou todos os rostos que se perdem e se rncontram em todas as estações do mundo. No seu relógio, a hora da patagónia confunde-se com a hor ade são petersburgo; a hora solar cai no centro da alma que anda ao contrário, como o relogio do bairro judeu de praga; e o poeta puxa as garrafas para a sua frente, no balcão, para que os gestos bruscos do bêbedo que se abraça à rapariga gorda não as façam cair, sujando o lugar em que, no princípio deste século que vai acabar como começou, lenine esperava o comboio de regresso. É então que uma procissão de cantores loucos atravessa o átrio; que as suas vozes se juntam para invocar a santa joana dos abismos; que um silêncio nasce, em volta do rapaz estendido no chão, que agita o corpo non sobressaltos sonâmbulos do álcool. Por vezes, lemnine sai da sua mesa para espreitar esse corpo; os viajantes olham-no das janelas, chamando-o de dentro do seu sono; e as mulheres choram, lentamente, de trás dos balcões de vidro, como se sentissem a podrecer as raízes da sua juventude. Talvez seja por isso que esse poeta partiu; e que neste balcão onde o bêbedo e a rapariga gorda se abraçavam, todos os copos estejam vazios, como se o mundo inteiro os tivesse bebido até ao fundo, na tarde sem fim de helsínquia. de Teoria Geral do sentimento, Quetzal Editores, 1999. UM REQUIEM NA PRIMAVERA No tempo em que ninguém se podia confessar de esquerda, mas no tempo em que todos eram de esquerda, eu também era de esquerda, mas de uma esquerda à esquerda da esquerda, tal como as contas de multiplicar em que três vezes três são nove noves fora nada. Por isso, eu era de uma esquerda que se podia multiplicar por outras esquerdas até não ser nada, e recomeçava à esquerda desses nadas, num tempo em que tudo era assim mesmo. Com efeito, podia dizer-me anarquista, e ao mesmo tempo o contrário, o que desembocava em qualquer coisa como um materialismo subjectivo, embora recusasse o sujeito - e tinha razões teóricas para isso. No entanto, ao discutir contigo o materialismo dialéctico (do histórico nunca gostei, nem pude passar da primeira página d'«O Capital»), os teus olhos atiravam-me para os braços da reacção - sim, o amor que me levou a faltar a algumas manifestações para me sentar ao teu lado, na relva. De resto, o manet podia ter gostado desses almoços com livros e filosofia vegetal; e eu próprio começava a encontrar razões para rupturas existenciais na diferença entre a teoria e a práctica. O problema é que a práctica já tinha sido teorizada por alguns ortodoxos - depois do falhanço dos que tinhm tentado pratica a teoria. O drama estava aí: nessa incapacidade do real para se adaptar à perfeição das ideias. Não sei se fizeste isso de propósito; o que é certo é que não pude evitar os conflitos improdutivos da crne. Então, refugiei-me no território do espírito. Impus-me regras morais. Cedi ao hegel, como se o caminho do homem avançasse no sentido do progresso de forma automática, sem pôr problemas a quem vive. É verdade que também tinha lido o sade; mas o pasolini nunca me convencei, nem aquel Evangelho filmado às três pancadas num Gólgota da rive gauche. Quantos sermões da montanha tive de engolir para chegar ao jejum da mística! Por fim, refugiei-me na linguagem. Pensava que ela me libertaria das contingências do ser. Avancei por dentro do poema como se ele fosse um café, à procura de um balcão limpo de fumo e de conversas, onde não tivesse outro espelho para além desse que é emoldurado pela palavra espelho. Tropeçava sempre à entrada; ou não me deixavam passar. «Está fechado», diziam. E voltava atrás, para essa rua cheia de sol, com o calor insuportável do verão, sem saber como te encontrar. quantas agendas perdi!, e quantos números errei na cabina do infinito, esperando que a tua voz me respondesse, mas sem outra resposta senão o vazio da minha própria cabeça. Terei conseguido limpar tudo o que falhei nesse caderno da minha vida? Mesmo o estaline que nunca lá esteve, os anarquistas que falhavam o alvo no meio das bombas, o materislismo que sobrava de cada almoço interrompido na relva do manet? E tu, perdida nessa confusão de sinais e códigos, tu a quem impus a distanciação do brecht, o rigor calvinista da misoginia pessoana, como se a serenidade também tivesse de ser minha, - tu, ó mais esquecida das amadas, para que um dia fosses a mais lembrada, por que não me roubaste o cigarro da eternidade, não o apagaste no chão da vida, não me abriste o caminho do erro, que é o mais certo dos caminhos? de Teoria Geral do sentimento, Quetzal Editores, 1999.